Especialistas explicam se Brasília tem formato de cruz ou avião

O projeto de Lúcio Costa gera interpretações sobre inspiração inicial. Arquiteto e engenheiro comentam desenho e revelam desafios da atualidade

'Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz', disse Lúcio Costa
Foto: Reprodução/Instagram Axelspace Corporation @theaxelspace
'Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz', disse Lúcio Costa

Brasília completa 65 anos de existência cercada por interpretações sobre o projeto original de Lúcio Costa . Entre os moradores, muitos enxergam um avião no desenho do arquiteto. Essa crença é reforçada pela nomenclatura de dois bairros da Zona Central da cidade, chamados de Asa Sul e Asa Norte. Por outro lado, há quem acredite que os traços idealizados no planejamento da Capital Federal representam uma cruz. 

A ideia de que o Plano Piloto tem formato de avião nunca foi mencionada no memorial descritivo elaborado por Lúcio Costa em 1957. Segundo o documento, o partido arquitetônico adotado foi o de uma cruz, escolhida por sua simetria, equilíbrio e funcionalidade. Os dois eixos — o monumental e o residencial — organizariam a nova capital de forma racional, sendo um voltado à política e aos serviços públicos e o outro, às moradias e ao cotidiano dos cidadãos.

Croquis de Lucio Costa para o Plano Piloto de Brasília
Foto: Reprodução/Arquivo Público do Distrito Federal
Croquis de Lucio Costa para o Plano Piloto de Brasília

“A ideia de que Brasília foi projetada no formato de um avião é uma interpretação popular. O verdadeiro conceito de Lúcio Costa é que o projeto da cidade tem o formato de uma cruz”, esclareceu Gustavo Franco, professor de Arquitetura  e Urbanismo da Estácio de Brasília. 

Como o próprio Lúcio Costa explicou, na justificativa do projeto piloto entregue no ato da inscrição para o concurso que selecionou o desenho urbano da nova capital brasileira, a ideia surgiu do gesto do sinal da cruz, um dos símbolos humanos mais antigos. “Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”, escreveu. 

Brasília foi projetada para ser uma cidade organizada, com separações claras entre os setores e preparada para o futuro. Diferente das outras unidades da federação à época, a capital foi pensada para os novos tempos, com ruas largas que priorizam a circulação de veículos e uma arquitetura que é considerada o berço do modernismo brasileiro. 

“A lógica urbana do plano piloto de Brasília foi projetada para separar as funções da cidade de forma organizada e eficiente. O eixo monumental, voltado para os grandes edifícios e praças, é destinado às funções administrativas e políticas. Já o eixo residencial, com as asas, foi projetado para abrigar as residências e áreas de lazer, criando um equilíbrio entre o espaço público e privado”, explicou Franco. 

Essa nomenclatura de “asa” fixou no imaginário popular a ideia de que o desenho original de Lúcio Costa representa um avião, apesar de o arquiteto ter idealizado uma cruz. As asas são separadas pelo Eixo Monumental , que representa o corpo do avião. De um lado, a Asa Sul, com quadras comerciais e residenciais, e, de outro, a Asa Norte, que segue a mesma lógica. “As ‘asas’ representam essa divisão entre os setores e proporcionam uma organização que facilita a circulação e a vida urbana”, acrescentou Franco, especialista em cidade e habitação. 

Mas não é só isso que leva as pessoas a acreditar que Brasília tem o formato de um avião. As primeira ideias de Lúcio Costa foram inspiradas em um cruz ortogonal — com dois eixos perpendiculares que se cruzam —  , mas a topografia do terreno onde foi construído o Plano Piloto e as necessidades de melhor circulação impuseram uma adaptação, de modo que o eixo transversal foi arqueado, resultando em uma forma semelhante à da aeronave. 

Lúcio Costa, por outro lado, não concordava com essa interpretação. Em uma das últimas entrevistas que fez antes de morrer, dada a um jornal impresso, o arquiteto defendeu que o formato de Brasília "estava mais para uma borboleta". Por isso, há ainda uma terceira vertente que enxerga o inseto no desenho da capital, ou ainda uma libélula.

Crescimento além do esperado 

A forma, seja ela de avião, cruz ou borboleta, é apenas o ponto de partida para discutir o que a capital do país representa hoje: uma cidade que desafia seu próprio plano, cresceu além das expectativas e agora precisa repensar o futuro.

“Brasília é resultado de uma convergência de forças históricas, políticas e culturais que deram forma à mais ousada experiência de planejamento urbano do século XX”, disse o professor Gustavo Franco. “O aniversário de Brasília celebra o símbolo maior da arquitetura e do urbanismo modernistas no Brasil, mas também nos convida a refletir sobre os limites desse urbanismo, que muitas vezes segregou em vez de integrar”, lembrou. 

O projeto inicial de Brasília previa a ocupação de 500 mil habitantes até o ano 2000, quando completaria 40 anos. Inicialmente, o planejamento da nova capital previa a criação de acampamentos ao redor do Plano Piloto, para acomodar a população que vinha de outros estados do Brasil, principalmente para trabalhar, e formava o que, hoje, é chamado de Distrito Federal . Entretanto, esses locais, que tinham caráter provisório, acabaram se tornando cidades permanentes, como a Candangolândia, Núcleo Bandeirante e Ceilândia. 

Essas cidades satélites, ao contrário de Brasília , não foram planejadas. Hoje, o Plano Piloto conta com aproximadamente 200 mil habitantes, representando apenas cerca de 7% da população do Distrito Federal. Ou seja, a cidade que foi projetada para acomodar 500 mil pessoas, atualmente não tem nem metade disso residindo nela. 

Por outro lado, as regiões administrativas cresceram para além do esperado. Hoje, o Distrito Federal ultrapassa 3 milhões de moradores e é a terceira maior concentração urbana do país, segundo dados do último Censo, de 2022. A ocupação se expandiu para além das “asas” do Plano Piloto, alcançando cidades como Taguatinga, Samambaia, Gama e Sol Nascente — esta última, a segunda maior favela do Brasil, segundo o IBGE .

Ao todo, são 35 regiões administrativas que compõem o Distrito Federal. Projetada para representar um Brasil moderno, progressista e integrado, Brasília rapidamente se tornou um ícone mundial, mas, 65 anos depois de sua inauguração, a cidade também evidencia os limites do urbanismo modernista.

Brasília é a região metropolitana que mais cresce no Brasil. Desde as décadas seguintes à inauguração, a capital se expandiu além do planejado, impulsionada pelo aumento populacional em busca de oportunidades. Essa expansão, muitas vezes desordenada, trouxe desafios urbanísticos, como a sobrecarga da infraestrutura e a perda de controle sobre o crescimento urbano. “A funcionalidade sonhada gerou distâncias reais: enquanto a elite ocupa a escala bucólica do Plano Piloto, os mais pobres vivem onde conseguem, muitas vezes nas franjas da cidade”, pontuou Franco

Águas Claras é um dos exemplos mais visíveis desse crescimento desordenado. Planejada para abrigar construções de até três andares, hoje ostenta o prédio mais alto do Distrito Federal, com 36 pavimentos. 

Para o engenheiro civil Daniel Vasconcelos, a verticalização se tornou uma saída inevitável, mas não está isenta de impactos.“O crescimento populacional superou, e muito, as previsões iniciais. Isso pressiona o sistema viário, aumenta o consumo de água e energia, e exige soluções urgentes”, alertou. 

Gustavo Franco compartilha dessa visão. Além de Águas Claras, regiões administrativas mais próximas ao Plano Piloto, como Sudoeste, Noroeste e Lago Norte, também passam por um processo de verticalização, impulsionada pelo mercado imobiliário. Esse movimento, na visão do arquiteto “contraria o projeto original de Lúcio Costa, aumenta o adensamento e agrava problemas como a drenagem urbana”. “Soma-se a isso a preocupação com a sustentabilidade e a preservação do patrimônio arquitetônico da capital”, acrescentou.

Foto: Reprodução/Dênio Simões/Agência Brasília
Águas Claras, no Distrito Federal

Desafios para o futuro

Na avaliação do arquiteto Gustavo Franco e do engenheiro Daniel Vasconcelos, ouvidos pelo Portal iG , os principais desafios urbanísticos de Brasília envolvem a expansão desordenada das cidades satélites, a carência de transporte público eficiente e a pouca integração entre as regiões.

“Se Brasília não investir em transporte público de qualidade e acessível, especialmente na expansão do metrô, corremos o risco de um colapso urbano”, advertiu Vasconcelos. 

Foto: Reprodução/Renato Araújo/Agência Brasília
Metrô de Brasília

Atualmente, o metrô atende parcialmente regiões como Samambaia e Ceilândia, mas não cobre todas as quadras e sequer alcança áreas densamente povoadas da Asa Norte. A proposta de estender a malha metroviária, além de baratear os custos do deslocamento diário, ajudaria a reduzir a dependência do transporte individual — outro desafio de uma cidade projetada antes da explosão demográfica.

Segundo a última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), realizada em 2021, mais de 52% dos habitantes do DF utilizam carros para se deslocar até o trabalho. Além disso, a frota de veículos  da capital, que inclui carros, motos, caminhonetes, caminhões e ônibus, ultrapassa dois milhões, de acordo com dados do Departamento de Trânsito (Detran-DF). Esse quantitativo resulta em congestionamentos diários , principalmente nos horários de maior circulação, que são no início da manhã e da noite. 

“A mudança de mentalidade também passa por campanhas educativas e incentivos ao transporte coletivo”, ressaltou Vasconcelos “Em países como o Japão, as pessoas escolhem o metrô porque ele funciona bem. Brasília precisa criar esse modelo”.

Apesar desses desafios, é possível que o Distrito Federal, para além de Brasília, tenha um futuro saudável e preserve o título de uma das cidades com maior qualidade de vida do país. Para isso, é necessário que o planejamento urbano seja mais participativo e inclusivo. 

“Isso significa envolver a população nas decisões e promover uma ocupação que incorpore diferentes usos, escalas e faixas de renda, favorecendo a criação de cidades mais integradas e justas”, aconselhou Franco. “A adaptação pode ocorrer com a revitalização de áreas existentes, melhorias no transporte público, fortalecimento das centralidades fora do Plano Piloto e uso inteligente do solo urbano, sempre respeitando os princípios de monumentalidade, escala humana e integração com a paisagem que orientaram o projeto de Lúcio Costa. Dessa forma, Brasília pode evoluir sem perder sua essência”, sugeriu. 

Além disso, de acordo com os especialistas, é necessário ter sempre em mente que Brasília também é Taguatinga, Ceilândia, Sol Nascente e outros territórios que revelam a verdadeira complexidade urbana da cidade. “Esses espaços ensinam sobre resistência, criatividade e formas plurais de habitar o mundo urbano”, finalizou Franco.